5 de abril de 2010

Histórias de Amor Duram Apenas 90 Minutos, de Paulo Halm (Brasil/Argentina, 2009)

Seja pela sua extrema facilidade para escrever falas/discursos espertos, seja pelo fato de localizar o seu filme em meio a uma classe média carioca com aspirações artísticas, em meio a seus dilemas amorosos-existenciais, seria confortável colocar o longa de estreia na direção do Pepê (no blog se pode chamar os diretores pelo nome com os quais os tratamos) numa prateleira de comédia romântica carioca com propensão a leveza que beire a não existência. No entanto, isso seria comprar a mercadoria pelo valor de face sem olhar pra ela de fato. Pois desde o começo do filme, através de um saxofone na trilha, neons eventuais na iluminação e decoração de interiores hiper-trabalhada, indica-se uma improvável união de um imaginário cômico carioca, certamente devedor do parceiro constante atual de Pepê que é Hugo Carvana, com resquícios de um cinema paulista lá dos meados dos anos 80 (quando Pepê começa a trabalhar em cinema, diga-se). Improvável porque nada parece mais distante de um humor praieiro e malandro do que aquela angústia travestida em artificialismo de quem vive uma cidade dura de se ver pelo que é. Curiosamente, então, é este o Rio de Janeiro que sai do filme do Pepê: uma cidade bastante escura, onde mesmo quando se vai à praia, se vai de roupa e fica a paisagem fora de foco, onde o personagem principal parece sempre profundamente desconfortável consigo mesmo e com o seu entorno. É um Rio de Janeiro filmado poucas vezes, ainda mais no que se quer vender (não pelo diretor, mas pela comercialização mesmo) como uma comédia. Mesmo o aspecto sexual do filme, que tem uma presença e uma dimensão física como não se tem visto muito por aí, surge poucas vezes como encontro alegre de corpos - no que descamba na melhor e mais dolorosa (com duplo sentido, por favor) piada do filme. Mas talvez a melhro qualidade que eu veja no filme do Pepê seja mesmo o fato de que seu filme é claramente o retrato de um "merda" (daqueles que fracassa em se matar), mas que se irmana com esse merda e consegue se colocar de frente e ao lado dele - e acho que isso é uma das maiores dificuldades que o filme tem na sua relação com o espectador, porque irmanar-se com um merda não é posição confortável, nunca. Com uma presença muito forte de Caio Blat e um corpo perfeito (em muitos sentidos) em Luz Cipriota, o filme consegue os alicerces para sua narrativa, e tem seu clímax na cena triste, tristíssima, da visita noturna à casa do pai e a noite passada na cama de infância. A verdade é que há muita dor real e palpável em Histórias de Amor..., e isso, pra mim, é um tremendo elogio.
(visto pela segunda vez no Arteplex RJ, sala 3)

4 de abril de 2010

Ilha do Medo (Shutter Island), de Martin Scorsese (EUA, 2010); e Um Homem Sério (A Serious Man), de Joel e Ethan Coen (EUA, 2009)

Seria maravilhoso chegar aos filmes desprovido de pré-conceitos, principalmente aqueles passados adiante por seus próprios autores, mas também aqueles construídos a partir deles, seja nos textos e comentários de outras pessoas, seja principalmente pela simples noção da carreira pregressa de alguns cineastas - como estes aqui citados. Na verdade é este o meu principal motivo por gostar de ir a Cannes todo ano ver os filmes por lá: ganhar pelo menos esta chance de ver algo antes de ler opiniões sobre, um sentimento cada vez mais raro e precioso. Mas, aos autores e o peso de suas carreiras, destes não escapamos. E da necessidade sempre de precisar ter uma resposta na saída: é um Scorsese menor ou maior; é um passo à frente ou atrás, etc etc. Enquanto assistia aos dois filmes aqui, porém, sinto que conseguia sorvê-los pra além dos seus diretores, e foi isso que mais me deu prazer - mesmo que os dois filmes me pareçam tão perfeitamente obras destes.

No caso do Ilha do Medo, eu acho que há dois níveis em que o filme me interessa. Na construção estético-narrativa, há o óbvio prazer do Scorsese em montar aquelas cenas, em buscar determinados efeitos (alguns bastante grandiloquentes, outros extremamente sutis - principalmente no som), em brincar com seus atores (sim, porque há um sentido agudo de "to play" na maior parte das performances aqui, em especial Ruffalo, Kingsley, Von Sidow, Clarkson). Tudo isso dá ao filme, por mais horrendo/assustador que ele efetivamente seja, um sentido lúdico de degustar o prazer do cinema que é obra exclusivamente de alguns cineastas (e talvez não seja absurdo que o nome que tenha me vindo mais à mente, mais do que qualquer Fuller/Lang/Sirk das influências admitidas, seja o de Resnais). Por outro lado, eu sinto que há no filme algo de profundamente pessoal do Scorsese, muito mais do que ele deixaria pensar ou facilmente ver neste projeto aparentemente "contratado" e de gênero: afinal, pra além da questão das fronteiras da loucura mediada pela violência ser uma de suas obsessões conhecidas, há aqui algo mais que me parece tocar fundo nele, que é este sentimento de que, depois do Holocausto e da bomba atômica (heranças diretas colocadas sobre a sua geração, e certamente presente no seu imaginário enquanto crescia), falar em loucura e na relação desta com o Homem precisa ser feito em outro diapasão - uma vez que já tínhamos visto até onde se pode chegar. Nisso tudo é que as cenas dos campos de concentração me batem como extremamente firmes e adequadas ao filme. Mas, mais do que elas, as que realmente chocam e vão fundo são as de DiCaprio no final, chafurdando naquela violência caseira absolutamente insana. Aquela sequência ali (que não me soa a explicação definitiva e definidora de modo algum), ela sozinha acho que vale qualquer filme. Vontade de voltar a ele, em breve.

Um Homem Sério me pareceu ter algo de parecido no prazer da sua, digamos, degustação, que passa necessariamente pelo interesse solto de cada uma das suas cenas, mais do que o efeito do seu acúmulo (por mais que seja deste que o filme pareça buscar seu principal motivo). Sim porque seja em qual filme for de sua carreira, o que eu sempre mais gosto de ver nos Coen é o seu óbvio prazer em montar precisamente cada cena, seja no tempo dos atores e no enquadramento, seja depois no ritmo interno dos cortes e no uso do som. Aqui me parece que eles estão de novo dando uma clínica (e tenho certeza que o uso do termo fará salivar de prazer os detratores do seu cinema "frio e distante") em realização de cinema no que esta possui de mais micro da sua linguagem. Claro, tudo isso está a serviço de um discurso, o do caos que rege a vida humana, da ausência de sentidos maiores para ela, etc etc. Mas, honestamente, isso me parece no todo muito menos fascinante do que apreciar o prazer da dupla em colocar cada pequeno detalhe seu em cena (penso aqui no aparelho que suga o pescoço do tio, no timing daquela conversa no quintal com o pai do coreano e o vizinho miliciano, no uso da trilha). De resto, o sentimento de perda de contato com o mundo e as regras que o move é latente aqui, como no filme dos Scorsese, e que cineastas com tamanho controle do seu meio resolvam tratar da perda de controle é algo um tanto curioso.
(vistos no Arteplex RJ, salas 2 e 5, respectivamente)

O Segredo dos Seus Olhos, de Juan José Campanella (Argentina/Espanha, 2009) e Avatar, de James Cameron (EUA, 2009)

O problema da minha mania de deixar pra ver os filmes no cinema depois que as salas ficam um pouco mais vazias é justamente que chego tarde em várias das discussões, como é o caso aqui do filme argentino ganhador do Oscar e do fenômeno do ano passado. E, pior, quando ouço muitas opiniões radicais de um lado e outro (algo que aconteceu em ambos os casos aqui), tendo sempre a me ver no final nem tanto ao céu nem tanto à Terra, já que geralmente acabo achando que cada lado forçou a barra pra marcar suas posições, e pra isso precisou ignorar o que obviamente é um copo nem todo cheio nem todo vazio.

No caso do filme argentino, por um lado acho difícil não perceber as qualidades óbvias de um trabalho de ourivesaria de roteiro e, acima de tudo, de construção de personagens através do trabalho dos atores (principalmente os coadjuvantes). Campanella revela aí o seu olho de diretor de séries de TV americanas: uma capacidade grande de tornar cada ser que entra em cena minimamente cativante e de colocar as palavras exatas em suas bocas (dá pra notar o prazer da plateia em ouvir as falas e o jogo dos atores). Por outro lado, também me parece difícil acreditar que alguém não note o quanto não funciona a história de amor que Campanella quer porque quer construir como um espelho/projeção possível a partir do que acontece na parte político-policial do filme. A atriz está muito, muito mal (em oposição ao elenco masculino preciso), e em nenhum momento sentimos pelos dois como um casal nada além de uma distanciada simpatia. Eu acredito na força que existe na observação de Campanella do período da ditadura como um marcado antes de tudo pelo sentimento da impotência frente aos desígnios oficiais, e nisso a cena no elevador me parece disparado a mais forte do filme. Já quando Campanella quer fazer "arte" (como no tão falado plano-sequência no futebol, ou no desfecho surpresa à la Eastwood), no geral mete os pés pelas mãos. Se reforça pra mim sua imagem de um realizador mediano, um operário, que quando se foca nos personagens (O Filho da Noiva, principalmente) é muito mais forte do que quando se dá a querer ousar.

Já no caso de
Avatar, também senti a projeção do filme como uma verdadeira montanha-russa de coisas muito excitantes e outras francamente constrangedoras - e nem estou falando tanto aqui da questão da banalidade de construção narrativa ou dos personagens militares (que têm sua graça como caricatura), mas principalmente de algumas opções estéticas mesmo (acho quase todas as criaturas ou a floresta em si um tanto dsesagradáveis de se olhar, num sentido new age mesmo). Mas, principalmente, o filme me parece apoiado numa base bastante frágil ao propor o seu discurso anti-militarista baseado num desenvolvimento narrativo e estético que me parece obviamente glorificador do prazer estético pela violência e a destruição física do inimigo. Não tenho nada contra nenhuma das duas coisas a priori, mas tentar me vender as duas ao mesmo tempo, confesso, me deu alguns engulhos principalmente nas batalhas do desfecho da trama (que, além de tudo, parece um mash-up das coisas mais esquisitas, como Matrix, Retorno do Jedi, Senhor dos Anéis - pra ficarmos nos corelatos estéticos mais próximos). Por outro lado, tudo aquilo que dizia respeito ao ato em si de transformar-se num avatar e adentrar esse outro mundo me interessou bastante, assim como essa ideia que me parece fisicamente bastante presente no filme de ganhar movimento após a paralisia (assim como a de tomar o lugar de uma outra pessoa - no caso, o irmão morto). Curiosamente pra mim, então, o filme funcionou mais nos momentos mais íntimos, mais em primeira pessoa, em que víamos e sentíamos este homem vivendo num outro corpo, do que quase tudo de espetacular que Pandora, etc, traziam. Fora isso, eu preciso falar que minha experiência pessoal com o 3D é uma de maravilhamento por uns 15 minutos, e depois eu habito aquilo de um jeito muito parecido como um filme em 2D. Talvez por sentar sempre tão na frente no cinema, eu sempre tenha me sentido um pouco "dentro" de qualquer filme que eu veja, e confesso que não sinto uma diferença tão grande não. E, inclusive, me incomoda um pouco (nem fisicamente, não tive desconfortos ou enjôos/dores de cabeça) a coisa de ler a legenda, ver as profundidades, sentir os efeitos, etc. Coisas de nova tecnologia, estou certo.
(vistos no Arteplex RJ, respectivamente nas salas 1 e 4)

Breve sumiço e dois docs vistos na África

O blog esteve parado nas últimas semanas, paradoxalmente apesar de grande atividade em salas de cinema. Acontece que eu estava no júri de um festival na África do Sul (Cidade do Cabo), e além de haver pouco tempo pra escrever, praticamente a maioria das coisas vistas eram materiais pensados quase que exclusivamente pra TV, e não valiam muito a pena de se usar o espaço aqui pra falar. Demos os prêmios praquelas que talvez fossem as duas grandes exceções, ainda que as projeções digitais de cópias em DVD (um problema que, nota-se, está longe de ser exclusividade nossa), não permitissem exatamente as melhores condições de análise. Mas, que fiquem citados aqui os títulos, quem sabe pra que algum programador de festivais os descubra, ou pra que alguém resolva correr atrás e baixar por aí: eram eles War Against the Weak, de Justin Strawhand (EUA, 2009), um filme sobre a ciência da eugenia que apela pra uns efeitinhos meio bobos aqui e ali, mas que tem uma pesquisa de arquivo e uma noção de ritmo bem impressionantes; e Kentridge and Dumas in Conversation, de Catherine Meyburgh (África do Sul, 2009), cujo título é cristalino em dizer que o filme colocará lado a lado estes que são dois dos maiores artistas plásticos sul africanos (e do mundo) hoje, e a partir de um papo aberto entre os dois mergulha no seu fazer artístico e nas suas obras de uma maneira ao mesmo tempo discreta e bastante instigante. Belos trabalhos, ambos.