28 de fevereiro de 2010

Riri Shushu no subete (All About Lily Chou-Chou), de Shunji Iwai (Japão, 2001)

Uma experiência e tanto este quinto longa de Iwai, cineasta que de resto eu não conhecia. O filme é bastante desencontrado nos seus longos 140 minutos de duração, com enormes perdas de ritmo e foco no seu desejo de abarcar uma quantidade enorme de sentimentos e climas em torno da vivência adolescente no Japão contemporâneo, mas também deixa inúmeras imagens na memória por um bom tempo. Ao tratar por um lado da questão da intensa vivência virtual desta nova geração ao mesmo tempo que lida com os temas atemporais da inadequação, da pressão do coletivo e da busca de parâmetros pra se sentir melhor frente ao mundo nesta fase da vida, Iwai mergulha num universo que mistura o mais doentio e o mais sublime lado a lado, sem nenhum medo nem de ser profundamente perturbador nem de resvalar constantemente no mau gosto e no brega. Nesse sentido, é um filme realmente adolescente, porque se coloca praticamente no mesmo nível de seus personagens - e aí até mesmo sua forma desencontrada de se estruturar ganha um outro sentido. Assistir o filme em película 35mm também teve um outro sabor importante, o de colocar em pauta um filme certamente importante no contexto desta década que já ia acabando, e que não tínhamos tido a chance de ver no Brasil ainda. Pensar o filme como sendo de 2001 certamente o torna tão mais forte como experiência, porque embora algumas de suas tentativas pareçam um pouco ingênuas hoje (como reproduzir na tela de cinema o ambiente de um chat na internet, por exemplo), naquele momento elas tinham um outro peso.
(visto no cinema 1 do CCBB-RJ, dentro da mostra Zona Livre)

American Astronaut (EUA, 2001) e Stingray Sam (EUA, 2009), de Cory McAbee

O que mais impressiona nos filmes de McAbee é a disposição de ir até o fim com a cosntrução de universos absolutamente fechados em si mesmo, com uma lógica totalmente própria que aponta pra uma série de caminhos sem precisar explicá-los. São filmes que, até por sua mistura de gêneros (western, musical, ficção científica B), nos fazem pensar o tempo todo na história do cinema americano mais comercial, mas que ao mesmo tempo recusam todo tipo de facilidade nessa relação. Há sim semelhanças possíveis de se encontrar com o cinema de Guy Maddin, mas o humor tipicamente norte-americano de McAbee tornam seus filmes ao mesmo tempo mais leves e muito mais rascantes que qualquer coisa que eu já vi de Maddin. Stingray Sam tem ainda o adendo de ser um filme pensado em episódios, para passar tanto no YouTube ou celulares como numa tela de cinema, que dá a ele uma outra camada de aparência de filme barato, de seriado à moda antiga. Mas o que toca mesmo nos filmes é que, piadas e universos autocentrados à parte, McAbee acredita muito nos seus personagens e investe muito na verdade deles, o que consegue não raro emocionar (caso do bizarro Professor Hess de American Astronaut). McAbee não corre nenhum risco de revolucionar o cinema, mas nos apresenta algo de novo no cenário americano atual pela sua total independência seguir por caminhos bem menos esperados que o batido hipernaturalismo.
(visto no cinema 1 do CCBB-RJ, projetados em vídeo, dentro da mostra Zona Livre)

25 de fevereiro de 2010

Instrument, de Jem Cohen (EUA, 1998)

Logo no início de Instrument aparece na tela: "a film by Jem Cohen and Fugazi". E essa parece mesmo ser a principal chave pra se entender este filme: não é certamente um documentário sobre uma banda, mas um documentário com uma banda. Mesmo que em nenhum momento (até um pequeno plano já nos créditos finais) a figura do cineasta Cohen seja explicitada como um amigo da banda Fugazi, o que fica claro é que o filme só pode existir dessa relação de admiração e intimidade que passa pela forma de lidar com a idéia de indústria cultural (muito parecida para a carreira de ambos), mas que principalmente passa pela paixão pela música e pela energia de ver o Fugazi ao vivo. Neste sentido, Instrument parece especialmente adequado de se pensar como um "documento", porque ele informa muito pouco e testemunha muito mais. Há uma junção de estilos entre o free punk rock do Fugazi e as digressões audiovisuais que Cohen tanto gosta de fazer, e o resultado é que o filme funciona quase sempre sob o signo de um certo estado hipnótico. Seus 115 minutos são muito pouco narrativos, e muito mais presenciais - lembrando nisso, aliás, um bom show de rock.
(visto na sala 1 do CCBB-RJ, projetado em vídeo - seu formato original -, dentro da mostra Zona Livre)

24 de fevereiro de 2010

Good Dick, de Marianna Palka (EUA, 2008)

O começo de Good Dick é bem assustador pra todo mundo que está cansado (e quem não está, aliás?) de um certo cinema independente americano fofinho, que vive do elogio pelo elogio de uma certa quirkness pentelha e arrogante no seu mundinho de tiradas espertas e desprezo pelo resto do mundo. No entanto, logo fica claro que, na relação entre seu casal protagonista, Marianna Palka está disposta a ir bem mais fundo na estranheza, sem nunca perder o horizonte do humor de vista, construindo uma relação que nos desafia o tempo todo a simpatizar ou antipatizar com cada um dos personagens. Há no filme um prazer tocante pela informação sugerida mas nunca explicitada que é bem peculiar na maneira como se coloca em cena (com direito a uma citação clara ao cochicho final de Lost in Translation). Para além disso, Good Dick é um filme que se constroi visualmente de forma muito inteligente, e que ainda nos dá o prazer de rever na tela, mesmo que numa breve cena, o grande Charles Durning, figura marcante pra quem construiu seu cabedal inicial de imagens de cinema a partir do cinema americano do fim dos anos 70 e começo dos anos 80 (e que andava sumido de um papel decente desde E Aí Meu Irmão Cadê Você).
(visto na sala 1 do CCBB-RJ, projetado em vídeo, dentro da mostra Zona Livre)

Jedné Noci v Jednom Meste (One Night in One City), de Jan Balej (Rep. Tcheca, 2008)

Na verdade, One Night in One City é, antes de um longa, uma coletânea de curtas que mais partilham um universo audiovisual do que uma narrativa. A criação de um universo palpável onde circulam suas figuras é, sem dúvida, a grande qualidade do trabalho de Balej, cuja opção pela animação de bonecos e massinha faz sentido absoluto justamente pela extrema materialidade dos ambientes que explora. Dentro do seu universo distintamente europeu oriental, Balej constrói uma certa mistura entre um universo de tintas fortemente kafkianas com uma lógica (ou ausência dela) que faz lembrar mais de uma vez as experiências com animação que Terry Gilliam criava para o Monty Python (e que, de uma forma ou de outra, se refletiram nos seus filmes posteriores). Fascinado pelos temas da memória e do apagamento, Balej se interessa acima de tudo pela criação de elaborados rituais secretos e pessoais nos universos de cada um dos seus personagens (a cena no apartamento do "cremador de cachorros" é marcante pacas). Há ainda no seu universo torto e obscuro uma insuspeita ternura, que se espalha e domina totalmente a cena em segmentos como o do Sr. Galho e do Sr. Barbatana.
(visto na sala 2 do CCBB-RJ, projetado em vídeo, dentro da mostra Zona Livre)

Um Dia Qualquer, de Líbero Luxardo (Brasil, 1962)

Muito mais que saber que este é um filme brasileiro de 1962, o leitor precisa saber do seguinte: este é o primeiro (e continua um dos únicos) longa PARAENSE realizado na história. Ver o filme sem pensar nisso com frequência é não ver o filme - que tive oportunidade de assistir porque vai sair em breve na coleção da Programadora Brasil, e eu escrevi o texto crítico que acompanha o DVD. Não vou me ater longamente ao filme justamente por já ter escrito este texto referido acima (e a idéia aqui do blog é escrever sobre aquilo que não escrevo em outros lugares), mas quis fazer menção aqui porque acho importante sabermos da existência não só deste filme em si, mas da oportunidade de vê-lo agora em DVD por aí. É um tremendo choque a liberdade de criação de Líbero Luxardo, que é claramente um admirador do cinema clássico, mas tb conhecedor das experiências dos cinemas novos que cercavam aquele momento. Um tipo de filme que só pode mesmo ser feito num estado tão fora de qualquer idéia de indústria ou de grupo de produção, fruto de um isolamente difícil de imaginar hoje, na era das imagens a disposição de todos. E, se tudo isso fosse pouco, o filme nos lembra ainda como a discussão "ficção influenciada pelo documentário" é antiga e já deu resultados mais interessantes. Um filme a ser buscado por quem se interessa por.... bem, muita coisa, mas principalmente cinema.
(visto em DVD)

10 de fevereiro de 2010

O Homem que Engarrafava Nuvens, de Lirio Ferreira (Brasil, 2008)

É difícil falar deste filme sem simplesmente repetir boa parte do que diz o Francis no texto dele na Cinética, porque parece bem claro que o grosso dos problemas do filme está resumido ali. Eu só levaria mais adiante a questão de que esta fratura entre vários diferentes filmes que existem dentro do mesmo filme aqui é acentuada por duas pulsões que vêm de fontes diferentes. De um lado, a gente vê o mesmo Lírio Ferreira que co-dirigiu Cartola, e que busca sempre que possível ousar esteticamente dentro do formato tão careta a priori do documentário biográfico. Aqui isso fica especialmente claro nas várias inserções de cenas raras da história do cinema brasileiro (trailers, cinejornais, trechos) que atendem principalmente a um desejo dele de mostrá-los, muito mais do que do filme de prescindir deles (e nada contra, são momentos fortes pra quem gosta de cinema nacional). Do outro lado, tem todo o discurso afetivo-pessoal da produtora e filha do biografado, Denise Dummont, que assume um esquisito papel duplo mal resolvido de objeto do filme (dá entrevista inclusive ao lado da mãe), e sujeito do mesmo (os entrevistados se dirigem sempre a ela, deixando ver quem capitaneava os processos de conversa do filme). Me parece claro que toda fratura exposta no filme vem destes dois desejos firmes e fortes que em nenhum momento quiserem se curvar ao outro, e que com isso acumulam belos momentos, que no entanto fluem com a graça de um elefante por uma montagem que não chega a conseguir fazer deles um discurso só. O filme tem charme e considerável emoção, mas é episódico, cansativo, digressivo, um tanto perdido. Em vários sentidos, prefiro isso ao documentário certinho e sem alma, mas tb seria falso dizer que se trata de um filme que dá conta de suas missões auto-impostas.
(visto no Arteplex Rio, sala 5)

Trash Humpers, de Harmony Korine (EUA, 2009)

Não é por mera coincidência que pensamos no John Waters dos anos 70 (o de Desperate Living e Female Trouble principalmente) vendo este mais recente filme de Korine. Existe antes de tudo no filme um desejo de desagradar, de ser grotesco e grosseiro, de eventualmente forçar o espectador a desviar o olho da tela. Mas existe ainda (e é aí que se aproximam) o desejo ainda mais forte de propor com esta sociedade paralela desregrada e doentia um espelho que reflita sobre a falta de nexo da sociedade estruturada e "bem resolvida". O filme de Korine tem um quê de desejo de choque gratuito (a maneira como a violência entra no filme, por exemplo, é bem boba), um outro tanto de auto-reflexividade que o simplifica demais (o discurso na ponte, principalmente, mas tb as brincadeirinhas visuais com o VHS), mas nada disso tira a força presente no que ele tem de melhor, que são as cenas mais desconectadas de qualquer lógica, na figura mesmo destes quatro seres com seus rostos bizarramente deformados e claramente mascarados, nas suas vozes, expressões e canções distorcidas. Sem dúvida Korine se refastela um pouco demais no seu status de enfant terrible auto-criado, mas sem dúvida também é preciso dizer que ele faz aqui um filme como nenhum outro no cinema mundial atual.
(visto no cinema 1 do CCBB-RJ, projeção em DVD, dentro da mostra Zona Livre)

4 de fevereiro de 2010

Lula, o Filho do Brasil, de Fabio Barreto (Brasil, 2009)

Fica bem claro (pelo menos para mim ficou) ao longo da projeção que o grande termo para definir este Lula é mesmo "funcional". Tudo que compõe o filme está lá seguindo a lógica deste termo tão caro ao mundo contemporâneo - a começar, aliás, pela sua própria existência, que sentimos ser toda baseada numa lógica de marketing e de exploração de um momento histórico (e nisso não deixa de ser o mais irônico de tudo que o filme não tenha... er... funcionado nas bilheterias). É o termo funcional que explica inclusive a correção "estética" que o filme todo possui: nada dos constrangimentos recentes de um Bela Donna, de um Jacobina, de um Caravaggio. Com bastante dinheiro em caixa, Fabio Barreto chama uma série dos mais competentes técnicos brasileiros (do roteiro à finalização de som e trilha, passando por cada um dos outros aspectos técnicos), e realiza de maneira absolutamente correta cada passo da jornada de Lula, do interior à Vidas Secas ao quase documentário à la anos 70. Cada cena e personagem é estudado para significar algo exato para o desenvolvimento e mensagem do filme ("a jornada de um brasileiro heróico"), e estão na tela o tempo preciso para isso. Tudo está ali, no seu lugar. Só que a ironia é essa: ao tentar o melodrama clinicamente estudado, Barreto mata aquilo que é a chave do sucesso de um bom melodrama, ou seja, o descompensado, o exagero, o excesso, a falta de pudores. Lula se deseja então um melodrama científico. O resultado não podia ser outro: um filme que assistimos a 200km de distância, quase com uma caneta e prancheta na mão marcando "ok" pra cada passo estudado do personagem/roteiro. Ou seja, extremamente funcional porque deseja servir pra todos, o filme, obviamente, não serve pra nada nem ninguém de fato.
(visto no Cinemark Botafogo sala 2)

Tiradentes em um parágrafo

Envolvido na Mostra de Tiradentes de diferentes maneiras (como curador de curtas, mas tb como editor da cobertura da Cinética, mediador de debates, mas principalmente espectador obsessivo das sessões), era impossível ter tido tempo pra escrever sobre cada filme visto, como propõe este blog. mas talvez valha quebrar a lógica e dar então um parágrafo à mostra em si. No que tange os curtas, claro que eu sou bem suspeito pra dizer algo, então digo apenas que dedicarei textos inteiros a alguns dos meus favoritos do ano numa pauta que a Cinética coloca no ar até o começo da semana que vem. No que tange os longas, já conhecia uma boa parte do Festival do Rio do ano passado, e entre eles e os que não conhecia (a maioria do Aurora) me parece que foi, tendo eu meus favoritos e "desfavoritos" como sempre, o conjunto mais firme de proposições instigantes de cinema que já vi por Tiradentes. Os debates filme a filme nos dias seguintes foram quase sempre bem fortes, possibilitando do todo das conversas que saíssemos com uma boa série de coisas a desenvolver a partir das individualidades e do conjunto - não é pra isso que pode servir uma mostra, acima de tudo? Finalmente, como disse no Facebook logo ao chegar, Cabeça a Prêmio, Morro do Céu, Terras, Estrada pra Ythaca, Belair e A Falta que Me Faz são filmes que não esquecerei tão cedo (com Esperando Telê, Insolação e Os Inquilinos me deixando vários outros pontos firmes na lembrança), mas Pacific me parece agora, numa primeira impressão, o filme a não se perder de vista. A maioria destes espero rever assim que puder, e aí dedicar pelo menos um parágrafo aqui a eles.