4 de abril de 2010

Ilha do Medo (Shutter Island), de Martin Scorsese (EUA, 2010); e Um Homem Sério (A Serious Man), de Joel e Ethan Coen (EUA, 2009)

Seria maravilhoso chegar aos filmes desprovido de pré-conceitos, principalmente aqueles passados adiante por seus próprios autores, mas também aqueles construídos a partir deles, seja nos textos e comentários de outras pessoas, seja principalmente pela simples noção da carreira pregressa de alguns cineastas - como estes aqui citados. Na verdade é este o meu principal motivo por gostar de ir a Cannes todo ano ver os filmes por lá: ganhar pelo menos esta chance de ver algo antes de ler opiniões sobre, um sentimento cada vez mais raro e precioso. Mas, aos autores e o peso de suas carreiras, destes não escapamos. E da necessidade sempre de precisar ter uma resposta na saída: é um Scorsese menor ou maior; é um passo à frente ou atrás, etc etc. Enquanto assistia aos dois filmes aqui, porém, sinto que conseguia sorvê-los pra além dos seus diretores, e foi isso que mais me deu prazer - mesmo que os dois filmes me pareçam tão perfeitamente obras destes.

No caso do Ilha do Medo, eu acho que há dois níveis em que o filme me interessa. Na construção estético-narrativa, há o óbvio prazer do Scorsese em montar aquelas cenas, em buscar determinados efeitos (alguns bastante grandiloquentes, outros extremamente sutis - principalmente no som), em brincar com seus atores (sim, porque há um sentido agudo de "to play" na maior parte das performances aqui, em especial Ruffalo, Kingsley, Von Sidow, Clarkson). Tudo isso dá ao filme, por mais horrendo/assustador que ele efetivamente seja, um sentido lúdico de degustar o prazer do cinema que é obra exclusivamente de alguns cineastas (e talvez não seja absurdo que o nome que tenha me vindo mais à mente, mais do que qualquer Fuller/Lang/Sirk das influências admitidas, seja o de Resnais). Por outro lado, eu sinto que há no filme algo de profundamente pessoal do Scorsese, muito mais do que ele deixaria pensar ou facilmente ver neste projeto aparentemente "contratado" e de gênero: afinal, pra além da questão das fronteiras da loucura mediada pela violência ser uma de suas obsessões conhecidas, há aqui algo mais que me parece tocar fundo nele, que é este sentimento de que, depois do Holocausto e da bomba atômica (heranças diretas colocadas sobre a sua geração, e certamente presente no seu imaginário enquanto crescia), falar em loucura e na relação desta com o Homem precisa ser feito em outro diapasão - uma vez que já tínhamos visto até onde se pode chegar. Nisso tudo é que as cenas dos campos de concentração me batem como extremamente firmes e adequadas ao filme. Mas, mais do que elas, as que realmente chocam e vão fundo são as de DiCaprio no final, chafurdando naquela violência caseira absolutamente insana. Aquela sequência ali (que não me soa a explicação definitiva e definidora de modo algum), ela sozinha acho que vale qualquer filme. Vontade de voltar a ele, em breve.

Um Homem Sério me pareceu ter algo de parecido no prazer da sua, digamos, degustação, que passa necessariamente pelo interesse solto de cada uma das suas cenas, mais do que o efeito do seu acúmulo (por mais que seja deste que o filme pareça buscar seu principal motivo). Sim porque seja em qual filme for de sua carreira, o que eu sempre mais gosto de ver nos Coen é o seu óbvio prazer em montar precisamente cada cena, seja no tempo dos atores e no enquadramento, seja depois no ritmo interno dos cortes e no uso do som. Aqui me parece que eles estão de novo dando uma clínica (e tenho certeza que o uso do termo fará salivar de prazer os detratores do seu cinema "frio e distante") em realização de cinema no que esta possui de mais micro da sua linguagem. Claro, tudo isso está a serviço de um discurso, o do caos que rege a vida humana, da ausência de sentidos maiores para ela, etc etc. Mas, honestamente, isso me parece no todo muito menos fascinante do que apreciar o prazer da dupla em colocar cada pequeno detalhe seu em cena (penso aqui no aparelho que suga o pescoço do tio, no timing daquela conversa no quintal com o pai do coreano e o vizinho miliciano, no uso da trilha). De resto, o sentimento de perda de contato com o mundo e as regras que o move é latente aqui, como no filme dos Scorsese, e que cineastas com tamanho controle do seu meio resolvam tratar da perda de controle é algo um tanto curioso.
(vistos no Arteplex RJ, salas 2 e 5, respectivamente)

Um comentário:

Murilo disse...

Engraçado com ainda existe gente que diga que Scorsese está fora de forma, caduco, etc. E uma das características instigantes, principalmente nos flashbacks, é que em nenhum momento elas demonstram aquela aura de auto-importância, o que possivelmente não seria o caso com algum outro diretor, sem o apuro de Scorsese, no comando. Mas ótimo texto, principalmente essa questão do controle. Também me deu vontade de rever, tanto o do Scorsese (pela terceira vez, aliás) quanto o dos Coen.